. Os dias do meio .

. no banco de trás .

Era um som característico e inimitável. Víamos da varanda do 4º andar o carro afastar-se, o meu pai com o braço de fora a acenar e aquele ronco metálico a ressoar contra o muro da Casa Pia – o eco do ricochete dentro da panela de escape do Volkswagen azul do meu pai. Eram os poucos minutos diários em que o víamos. Todas as manhãs éramos 3 a entrar no quarto dele a dar-lhe um beijo, antes de ir para a escola. Ainda no corredor, chamávamo-nos, as minhas irmãs e eu, como se estivéssemos num teatro, prontos para entrar em cena. Sussurrávamos e esperávamos pela deixa de entrada no corredor preto do tecto ao chão – como num teatro. Entrávamos em fila indiana e contornávamos a cama gigante para o acordar com 3 beijos. Se voltássemos a casa à hora do almoço, cruzaríamos com ele antes que saísse por volta das 14h. Minutos contados e já o meu pai ia trabalhar tarde e noite. Quando éramos mais pequenos, víamos da varanda do 4º andar o carro a afastar-se e o meu pai a acenar. Anos mais tarde, já adolescentes, vínhamos à varanda quando o carro chegava. O meu pai nunca deixou que recebêssemos amigos em casa, por isso a transgressão fazia-se convidada e todos os dias os metíamos lá em casa. No silêncio da noite, ouvíamos o carocha a aproximar-se, a porta a bater. Todo aquele carro era de sons fortes. O pai subia pelo elevador e os amigos desciam pelas escadas.

Ele comprou o carro quando eu nasci, alguns dias depois. Lembro-me de sonhar que o conduzia, lembro-me do cheiro dos bancos no calor do Verão, quando íamos para o Algarve pela estrada nacional, de perguntarmos pouco antes de chegar a Setúbal se faltava muito, de brincar com as minhas irmãs pelo caminho e de achar que o céu do Algarve era mais azul que o de Lisboa – e era. A minha mãe até tricotou um pullover que eu usava cheio de orgulho. No peito o símbolo, nas costas a matrícula. Um dia, eu tirei a carta e o carocha passou a ser meu e da minha irmã. A direção rija e todo o carisma daquele Volkswagen azul eléctrico estavam agora nas minhas mãos – o volante pequeno de corrida tornava-o ainda mais difícil de conduzir. Aquilo estava para além do ritual de passagem, do objecto que passa do pai para o filho. Era um sonho de infância, de quando brincava aos escritórios com as minhas irmãs. A brincadeira começava sempre com a ida para o trabalho: sentados numa arca que ainda está no corredor, entrávamos no carro e conduzíamos. Imitávamos o som das portas e do motor. Muitas vezes a brincadeira não passava da viagem, porque o emocionante era conduzir, não era o escritório. O carocha condensava a ideia de futuro, de uma idade maior – o mundo dos grandes – e a fantasia de um brinquedo gigante. Redondo, bonito e brilhante, o carocha ainda parece um carro de brincar.

Acordei num sábado de 1995 e o meu pai dormia no sofá, encolhido como um bicho assustado. A 200 metros de casa, o carocha estava encavalitado num muro gradeado que separava a estrada cá em cima das linhas de comboio muitos metros mais abaixo. Saí de casa para esperar a chegada do reboque e levei a Nikon. O meu carro estava morto. Fotografei-o, entrei e esvaziei o guarda-luvas. Disse adeus àquele cheiro, ao banco de trás onde viajei e andei à bulha com as minhas irmãs, ao meu lugar que era o do meio, e fui para casa ralhar com o meu pai. Disse-lhe: não achas que eu é que estou na idade de espatifar carros?

. 9 .

No dia 24 de Junho de 1983 eu saí de casa sem calças.
Era o aniversário de um primo, numa daquelas tardes em que depois do duche já começas a transpirar. Vesti-me para ir à festa: uma t-shirt que ficava grande demais, chegava a meio das coxas. Dizia Hasselblad no peito e nas costas, e na manga esquerda, o desenho de uma máquina fotográfica. Bonita e elegante, do lettering ao desenho da máquina, aquela t-shirt era especial. E a cor. Aquela cor. Nunca a vestira antes por ser tão grande. Olhei-me no espelho e decidi: é hoje.
Usei-a como um vestido de Verão, com um cinto a rematar. Uma t-shirt azul-céu intenso e um cinto fininho de verniz vermelho.
Saí para a rua e apanhei um táxi. Sentei-me no banco de trás com a sensação que tinha vestido uma personagem que também era eu. Não o fiz a pensar que estava a vestir-me como uma rapariga. Fi-lo porque que estava a combinar 2 elementos de uma maneira diferente do que costumava fazer e porque achava que ficava estupidamente bem assim.
Já em frente ao prédio onde viviam os meus primos, pensei: é agora. E entrei.
Dos amigos do meu primo vieram alguns olhares a estranhar o que eu trazia vestido, mas rapidamente me fundi na brincadeira e, para mim, a festa estava começada.
Anos mais tarde comecei a inventar mais. Roupa do avesso, a minha colecção de camisas brancas rasgadas que tanto afligia a minha mãe – Oh filho, não tinhas mais nada para vestir? – as camisolas de pijama, as penas nos sapatos. Mais tarde, as saias e a colecção de casacos, as jóias e a maquilhagem, os acessórios, os coletes e lenços. Tudo servia para me recriar, mas o primeiro cross-dressing foi quando ainda tinha um só dígito – 9.
A fauna da Lisboa por onde eu me movia e entre as pessoas da minha idade, não era assim tão variada. A diferença era apontada com desdém e agrados vindos das obras, ou mesmo a ocasional cuspidela vinda de um autocarro que passava. Não era um ambiente pacífico, mas eu saía de casa reinventado e fazia-me. A cada vez o meu universo expandia, sem medo e sem vergonha, a tentar perceber se havia um limite, uma fronteira. E não havia, porque eu olhava para mais longe. Pelo meio, o Bowie e as fotografias nas capas dos discos, as letras das músicas que me apresentavam o grande camaleão, um homem que se reinventava à medida que avançava. Aquilo cantava o que eu era aos 16 anos.
Ainda guardo o osso com que prendia o moicano azul que usava atado num puxo no topo da cabeça. Não me esqueço da noite em que apanhei o 42 à porta de casa, a cara incrédula dos passageiros quando avancei pelo corredor para me sentar lá atrás. Comentavam baixinho, apontavam com o queixo. Quando me levantei para sair, aquela meia dúzia de pessoas tinha o riso preso. Olhei para todos e sorri. Eles estalaram a rir e eu ri com eles. Riam por achar ridículo ou surpreendente, mas para mim foi uma estranha comunhão. Aquele riso afirmava-me como parte da cidade. O riso partilhado que, muitas vezes, é o início de algo maior.
O prazer de me identificar com o que visto cresceu comigo e faço-o todos os dias. Deixou de ser uma projecção do que eu queria ser para reflectir quem sou. Deixei para trás a provocação e o confronto e abracei a subtileza dos detalhes. Um amigo riu quando lhe disse que sou discreto a vestir-me. Respondi-lhe que já fui bem mais exuberante. Depois contei-lhe da t-shirt azul e do cinto vermelho.

hasselblad

. Nikon F .

Com 20 anos, fui de férias com amigos e levei a minha máquina fotográfica – uma mítica Nikon F, linda e bruta, pesadíssima. Naquelas 2 semanas acampámos perto do mar e eu levei a Nikon comigo para todo o lado. Tirei uma única fotografia, a caminho da praia, no banco de trás do carro. Ao revelar o rolo em casa, puxei a ponta do filme mais do que devia e queimei dois terços do fotograma. No canto da imagem, apenas as duas pessoas que fotografei e parte de uma garrafa de água que um deles bebia. Foi o suficiente.
Quando o meu pai morreu, tive medo de me esquecer da voz dele. Durante meses ouvi-o na minha cabeça, a dizer o meu nome ou qualquer outra coisa que me ajudasse a sentir que não o estava a perder. Lembrei-me do video caseiro de quando ele fez 50 anos – ali eu poderia voltar a ouvi-lo. Mas a câmera não era nossa e a cassete, se ainda existisse, estaria perdida numa caixa ou numa gaveta, algures em casa de alguém. Deixei estar.
Quando mais tarde comecei a dançar, parei de fotografar. Deixei de querer fixar imagens em sais de prata e aprendi a perceber o meu corpo. Aprendi que a minha memória me serve. Lembro-me.
Posso gravar uma voz, fotografar uma cara, mas nada conta melhor a minha história que o álbum que trago comigo. Cheiro o pescoço de quem gosto, aprisiono partículas de cada pessoa. Faço um álbum de família e de amores, de tudo o que me faz chegar a casa. As minhas pessoas são minhas e esse saber cabe no bolso da minha camisa. As músicas e os cheiros trazem tudo de volta. A memória está toda no corpo e basta-me. Escrever é compor cadeiras de flores.
Na primeira noite daquelas férias, largámos a correr pinhal adentro, uma ladeira íngreme que se desenhava a safanões de lanterna.
O chão e os arbustos não tinham cor. O pinhal passava por mim, destemido, ileso.
O nosso riso apontava o caminho. Atrás de nós, escuro. À nossa frente, o escuro. Entrámos vida adentro, a correr. Devia ser sempre assim – ir a correr sem ter medo de não ver.
Eu ainda estou a correr naquele pinhal, sem saber onde piso, a confiar no riso partilhado – ponto a ponto, passo a passo.
Aquela corrida é a única fotografia, é o som da minha voz, são todas as palavras.
Ainda está a acontecer.

2013 11 27 Nikon F

. de tudo o que é maciço e permanente .

. de todas as letras que uso para escrever, escolho a primeira do teu nome .
. de todas as manhãs, as que cheiram a palha húmida .
. entre todas as vozes, distingo umas poucas .
. de todos os poemas, um soneto .
. das fotografias, guardo aquela em que estás de costas e que nem sabes que eu tirei .
. das músicas que me tocam, oiço aquela que ela canta de noite no parque .
. de todas as viagens trago o ar que respiro .
. de todas as plantas, cuido das minhas .
. dos momentos em que foi mesmo verdade, escolho aquele .
. de todas as vezes que te olhei nos olhos, não esqueço nenhuma .
. em todas as decisões, o livre arbítrio .
. de todas as temperaturas, as quentes .
. de todas as crianças, as que também são minhas .
. das comidas, a cozinha lenta .
. das dores, as que acabam .
. em tudo, o querer .
. de tudo o que é maciço e permanente .
. tudo o que aprendi com a minha mãe .
. em todas as falhas, o querer fazer bem .
. de todas as vezes em que perdi a razão, mas insisti, ainda me envergonho .
. de todas as entradas no mar, não vou escolher nenhuma .
. a vez em que me escolheste, fico com essa .
. os amigos que são a família .
. todas as caras e todos os nomes .
. tudo o que não quero ser tanto e me faz um homem melhor .
. a verdade como uma pele inteira com cicatrizes .

. Porta .

No muro da auto-estrada que aponta para sul, há uma porta.

Passo pelo muro na estrada e vejo a porta fechada que separa o outro lado, onde crescem coisas.

Lembro-me de um livro que guardo entre livros, onde um homem vive numa cidade por cima do chão.

No chão que ele pisa a caminho do trabalho, nascem casas e pontes. Ninguém sabe o que está por baixo.

Ao homem que vive na cidade por cima do chão, não lhe chega a vida que tem.

Quando tudo parece acabar, ele usa uma faca e risca numa parede uma porta.

Três riscos e ela aparece. Ele atravessa-a. E não olha para trás.

Quero ser um homem melhor.

Sigo o coração sem vergonha.

Tomo decisões.

Sou um querido feroz.

Faço uma porta, mas não tem que acontecer nada.

Com a mesma mão atravesso-a.

Com a mesma mão acerto o passo.

Choro na auto-estrada.

A porta está aberta.

2013 09 09 - A porta

. Os dias do meio .

Recebi uma mensagem da minha mãe que dizia: Pai não está bem, pergunta por si. Dá para passar cá?
Eu estava longe, tinha pressa de o ver. Voltei para Lisboa sem pressa de chegar, sabia que faltava pouco.
Vim no banco de trás, em silêncio. Quando o meu pai adoeceu eu chorei todos os dias durante 2 anos.
Foi estranho viver acostumado ao choro. Parecia não ter fim.
Mas houve um dia em que não chorei. E a estranheza então foi essa: hoje eu não chorei.

A última vez que estive com o meu pai ele dormia.
Acordou por breves minutos, no torpor da morfina. Perguntou pelos meus dias, quis fumar.
Sentei-o e ajustei as almofadas. Segurei a cigarrilha e o cinzeiro.
Ele tragava devagar, deixava as frases a meio e adormecia. A cinza demorava entre os meus dedos, na ponta do fumo. Acordava e fumava, adormecia com a cigarrilha entre os lábios.
Fi-lo na ternura de uma tarde de Agosto. No silêncio de quem sabe o que vai acontecer, estávamos ali os dois, olhos nos olhos, a fumar uma cigarrilha.
Ele engasgou-se e começou a tossir. Endireitei-o e sentei-me na cama por trás dele, para que se encostasse a mim.
Abracei-o, a minha cara pousada no ombro, no pescoço. Cheirei-o.
O corpo frágil, o olhar suave. O meu pai indefeso e eu a parar de cair. O meu pai cheirava a bebé.
Ele adormeceu novamente e eu fiquei ali. Guardei-o e guardei-me, deixei-me ficar.
Este é o fim, é assim que acaba. E foi bom, e estava tudo ali.

* * *

Não é verdade que nos despedimos de quem se vai embora.
Nunca dizemos adeus, vivemos o presente enquanto ele existe, como se fosse para oferecer.
Os últimos dias são como os primeiros, como os do meio – estamos, somos, amamos. Não há despedidas.
Hoje conto 12 anos desde aquela tarde de Agosto.
Lembro-me de tudo.
Habituei-me a viver sem ele, mas não há despedidas.

(13 Agosto 2013)

2013 08 13 - Os últimos dias

. A vizinha .

A vizinha de cima é uma velha senhora.
A vizinha de cima é uma senhora velha.
Veio do campo para a cidade, teve filhos e teve netos. Passa muito tempo à janela. Pode ser vista logo pelas 7h da manhã. Vai falando com quem passa e conhece, atira pão seco aos pombos.
Tem sempre um lenço na cabeça e cáries nos dentes.
Durante anos teve plantas na varanda, que regava e adubava com espinhas de bacalhau, como fazia na horta lá na terra.
A vizinha de cima vive um bocadinho alheada.
A vizinha de cima cheira mal. A casa da vizinha cheira mal, e no Verão, as escadas do prédio cheiram mal por causa da casa da vizinha.
Já discuti com ela várias vezes por causa do pão que atira aos pombos e os atrai para a minha janela, por causa das espinhas de bacalhau e ossos de frango que aparecem na minha varanda.
Um dia perdi as estribeiras e gritei com ela. Disse-lhe o que toda a gente pensa mas ninguém diz: a vizinha é porca e cheira mal. Ainda assim, a vizinha tem saudades minhas quando eu não estou. Ela gosta de me ver regar as plantas. A varanda da vizinha já não tem plantas. A vizinha ainda atira pão aos pombos, mas agora com mais cuidado.Todos os meses a família reúne em casa da vizinha para jantar. Falam alto como fazem as famílias e festejam aniversários. Descem as escadas em conversa animada à 1h da manhã, como se fosse cedo. Saem felizes. Sempre me surpreendeu como eles aguentam estar ali tantas horas, com aquele cheiro. E jantam. Mas estão e voltam.
A família da velha senhora que cheira mal e vive no andar de cima, gosta muito da sua avó. E eu gosto disso. Se ela não cheirasse tão mal eu adoptava-a, como fiz com o Sr. Ventura, que vivia no rés-do-chão do 25. Ele passava horas a apanhar o sol de Inverno junto à minha mota e conversávamos todos os dias. Um dia deixámos de o ver. Adoeceu e começou a sair muito pouco. Quando apareceu estava mais magro e frágil. Depois nunca mais.

O estendal das traseiras da vizinha tem uma saia que vive lá.
Quando me mudei para esta casa, a saia já lá estava, velha e puída. Esfarrapada como a vela de um navio fantasma, cortina em casa abandonada, queimada pelo tempo. A saia da vizinha mora ali há mais de 8 anos. Eu tenho para mim que o plástico que está debaixo da saia é o saco onde ela guarda o ouro quando sai de casa – um truque antigo para despistar piratas.
A saia da vizinha tornou-se uma lenda, uma história para contar. Todos olham para cima e estremecem ao vê-la, imponente e ameaçadora como a vela de um galeão pirata, navegando amaldiçoada no estendal das traseiras.

Ontem olhei para cima e vi a saia. E tive vontade de perguntar à vizinha porque é que ela a tem ali pendurada há tantos anos. Hoje ao estender a roupa, vejo a saia da vizinha caída no estendal do andar abaixo do meu. Estremeci.

Temo pela vida da minha vizinha.

(26 Julho 2013)

2013 07 26 - A Vizinha

. My home is the sea .

Vi os meus pés enterrados na mesma areia que os teus.
Vi gente a correr em palco, atrás de uma borboleta que não estava lá – alguém olhava para trás, à procura daquilo que já não é.
Vi um bebé cair na água sem se afogar porque aprendeu a boiar.
Vi um rapaz de 9 anos empurrar um carrinho de bonecas e entrar apressado no prédio, tentando esconder de mim o xixi que não conseguia conter e lhe saía através da ganga das calças.
Vi as costas musculosas de um homem de pele muito branca – pronto para morrer um dia.
Ouvi-me cantar na praia sem medo.
Senti o calor de um raio a bater-me na cara.
Acordei de um sonho que metia um copo leite, duas cobras azuis e um segredo.
Vi o meu pai morrer em casa, como devia ser sempre.
Vi o meu coração querer voltar ao mar, onde pertence.

. Nascer e morrer em casa .
. Voltar ao mar em cinzas sem morrer afogado .
. (My home is the sea, my home is the sea) .
. forte . frágil . à vez .

8 de maio 2013

2013 05 08 - My home is the sea

. Veronica .

Ela está a olhar para mim e dói-me o ombro. Vejo pela janela uma árvore do outro lado do pátio. Sinto um dos braços adormecer e penso no que não devo. Respiro fundo e estou de volta à pequena sala com vista para o mar. Redistribuo o meu peso e descontraio o centro de gravidade. Ninguém se apercebe e as minhas pernas estão firmes – aguentam mais 15 minutos. Procuro outro foco – estão todos a olhar para mim. Atrás de mim uma janela e a Serra. Em frente à janela estou eu. Aos meus pés, o sol desenha uma coluna de luz e sombra que vejo transformar-se. Estão todos a olhar para mim. A sala está quente. Junto ao chão, uma fina camada de ar frio que só eu sinto. Estou nu e oiço o tronco ardido e preguiçoso resvalar sobre as cinzas na salamandra. Penso no tempo que não passa. Penso nas outras vezes em que pensei no tempo que não passava. O frio, as dores, o tédio e as vezes que foram tão boas que me libertaram e me fizeram avançar sem sair do lugar. A sala electrizada e aquilo a acontecer. Então pensei na Veronica. Ela estava a olhar para mim e eu estava mais exposto que nunca – o que ela via os outros não viam. O que eu fazia era só para ela. Ela estava deitada no chão, a desenhar-me num lençol de papel e não me largava. Aos olhos dela, todo eu sou forte e frágil como na vida real. Ela vê-me. Uma vez encontrei-a na rua e pedi-lhe que me desse um desenho. Ela tímida, deu-me o número do telefone e eu não liguei, deixei passar, com a certeza que a voltaria a ver. Deixei passar muitas vezes. Uns anos mais tarde, uma rapariga reconheceu-me num bar e falou daquelas vezes em que a sala ficou eléctrica – como aquilo nos tinha marcado a todos. Perguntei-lhe pela Veronica, disse-lhe que desde então as minhas poses são para ela. Ela fechou a cara com ternura. A Veronica não aguentou mais e matou-se. Eu sou daqueles que chora quando a Veronica morre.

(4 Março 2013)

2013 03 04 - Veronica

. A jarra .

No Verão passado, uma amiga passou pelo Porto e trouxe-me um presente: uma jarra de cerâmica, verde como o escuro das águas mais fundas.
Pesada e espessa, ela torce o pescoço das seis faces que elegantemente dão graça à minha sala.

No Outono a minha amiga fez-me querer festejar o meu aniversário. Ela queria melancias cheias de tequilla, eu queria um cinto de ferramentas, um beijo mais complicado, marinheiros a dançar no salão de baile e os amigos a aquecerem-me a casa – as coisas simples.

Fizemos a festa. Eu disse que eu mesmo iria comprar as flores. Dei uso a cada jarra e coloquei uma a uma no seu lugar. A festa, quase perfeita.
Nas semanas que se seguiram, estive do outro lado do mar, a apaixonar-me por uma cidade que eu não sabia que também era minha. Quando voltei, algumas das flores ainda estavam intactas – a florista disse que durariam 3 semanas. Foi o tempo que demorei.

De todas as jarras a água saiu clara, menos da jarra verde.
Pesada e espessa e de pescoço torcido, a jarra de cerâmica verde como o fundo das águas, estava coberta de gotas castanhas. Na minha ausência ela segregou uma substância melosa de cheiro adocicado. Uma fermentação alcoólica e misteriosa que dá vida à minha jarra de cor escura.
A água lá dentro a empurrar o que é doce cá para fora.

Sempre que a uso, ela devolve-me gotas de melaço castanho. Gosto de acreditar que vive um amor dentro dela, que respira e transpira quando eu não estou na mesma sala, e destila o carinho que a minha amiga lhe meteu dentro quando me a ofereceu. Não foi preciso o cinto de ferramentas nem pendurar-me num poste – bastou meter flores na jarra. O beijo chegou pelo natal.

(13 Janeiro 2013)

2013 01 13 - A Jarra

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