. sístole|diástole .
by Os dias do meio
O meu nome nasceu há cem anos, numa grande guerra. O meu nome foi à guerra e perdeu e voltou para me encontrar. Com ele morreram dois irmãos, o primeiro e o segundo. Três manos, três nomes, três meses. O mais velho era pintor e os seus olhos não me dão descanso. O do meio deu o nome ao meu pai. O último esperou por mim porque somos três e eu cheguei no fim. O meu nome conjurou-me, chamou-me à praça. Sou o terceiro e só comecei a chamar-me Pietro quando percebi que éramos inseparáveis, o nome e eu. Mais tarde veio a história daqueles que vieram primeiro e do homem em que me tornei. Antes de mim, o meu tio e o meu pai, guardiões absolutos dos três nomes, estafetas de um lume ileso. Quando chegou a minha vez bastou um só. Não sou o primeiro nem o segundo, sou o terceiro.
O meu nome é curioso e encanta, faz perguntar e traz sorrisos à conversa, condensa-se como um cheiro — pousa e fica. É todo por ordem e olha-me de frente, é bicho de instinto, é curso de água ligeira e cadeira na fila da frente. Tomo o chão que ele me dá e digo-lhe as coisas que ninguém me diz, digo-lhe tudo sem temer o ridículo.
Esse nome é mais que o meu nome, veio de uma montanha que se vê ao longe, é uma raíz comprida onde sou o arco, a corda tensa, a flecha e a ferida por onde a ponta sai. É um barco a desbravar uma língua nova, a bolinar na sua própria brisa, são os trópicos apeninos de Lisboa, é um bosque na praia. Ele não me prende nem me pertence.
Ser o último é quase não ser, quase voltar a nascer a dizer que sim de cor, de coração. O que sabe o mundo da minha pele, da extensão da sua flor, essa fronteira imensa; ou da memória toda? Em cada poro um dente-de-leão, um figo temporão fechado numa mão em concha.
Esse que é o meu nome veio de um lugar febril esquecido que une as pontas soltas, um promontório cortado a horizonte, primordial e feérico onde começam e acabam as coisas. Ali me vi grande e pequeno e o meu corpo atirado, vi o princípio e o fim quase iguais, um lugar preenchido onde somos fruta de verão, seca para o inverno. Eu estava todo inteiro de amor e vontade e desejo e querer, velho e sem arrependimentos, mas a mentir porque os tinha. Nesse lugar onde tudo existe em permanência, cada respiração é a vida inteira e as lágrimas saem em três, como os nomes. Nessa febre que sou eu, que é o lugar onde regresso, estou eu ra|paz e desassossego, deitado no chão com o sol ao meu lado a cobrir a nossa pele, a minha e a dele, onde tudo é pleno e verão eterno, onde nasce o primeiro toque, o primeiro beijo a cada instante e cada instante é fruta mordida a rebentar em veludo. Na febre sou esse amor primeiro, sou o toque suave de um dedo, do segundo e do terceiro e depois mais perto, mais perto, no mesmo sítio, de olhos abertos — sístole|diástole — olhos fechados; o mundo inteiro em duas folhas de erva. Chego-me aos seus lábios e guardo naquele instante a fonte onde sei que nunca me faltará a sede.
Adorei ler o texto,sobretudo o terceiro parágrafo. Muito intenso e sensorial!
Cheguei aqui via Tinder. Descobre-me lá.
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Adorei o texto! Acompanhei teu fluxo de consciência do começo a fim. Me senti desafiado, convidado a sentir contigo. Me lembrou bastante alguns contos da Clarice Lispector. Parabéns 😉
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