. Os dias do meio .

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. rio homem .

Há verões que apontam o caminho, que ressoam indefinidamente como uma canção que sabemos de cuore e se tornam o rochedo onde embatem todas as marés. Assim foi o verão dos meus 13 anos, num ano de capicua e de primeiras vezes. Nas vésperas de ir de férias com amigos, assisti ao meu primeiro concerto rock. Durante dias tentei ganhar coragem para pedir ao meu pai que me deixasse ir, mas sabia que o não era certo. A noite do concerto chegou e vi as horas passar, imaginei o concerto a decorrer sem mim e fechei-me no quarto, resignado. No dia seguinte, ouvi na rádio que a banda tocava três datas, sendo a última no domingo à tarde — domingo. à tarde. Determinado, apanhei o autocarro 28 para o Restelo, onde cheguei muito cedo. Ao Pavilhão d’Os Belenenses foram chegando os elementos da banda e a todos estendi o módulo do autocarro que todos acabaram por autografar — um primeiro tesouro que foi alvo de inveja na minha rua. Empoleirado no gradeamento da frente, assisti sozinho ao concerto dos Xutos & Pontapés e a minha cabeça abriu com a magnitude eletrizante do “ao vivo” da minha então banda favorita. Foi a 31 de julho de 1988. O dia seguinte seria 1 de agosto e tudo em mim era um fogo posto — e sim, foi épico ouvir o tema naquele dia.

Uns dias depois segui para o Minho. O comboio avançava na direção de tudo aquilo que eu não podia imaginar e o futuro próximo assumia contornos indistintos à distância. Era a promessa pré-adolescente de uma vida por estrear, como um par de sapatos novos com os quais temos todo o cuidado nos primeiros dias, mas que calçamos com displicência depois de se ajustarem à forma do nosso corpo. Eu ia um pouco a medo, sem saber se a amizade que tinha com aquele grupo de rapazes seria coesa o suficiente para duas semanas de férias. Todos eles tinham família no campo e eu era da cidade, tinham a desenvoltura de uma infância com idas frequentes à terra, das chinchadas, do jogar à bola e das vozes assertivas. Eu não era assim, não encaixava e não sabia porquê. Sabia que estava sozinho e que iria ser sempre assim.                   Chegados à vila em pleno Gerês, uma estrada subia o monte para o lugar onde acampámos no quintal da avó do Miguel, entre o espigueiro e a fonte onde, todas as manhãs, um garnisé de canto rouco e entrecortado rompia a lona da tenda canadiana e nos arrancava do sono. Lá em baixo, a vila e as festas de verão, e o rio onde todos iam nas tardes quentes, espalhados pelas margens sombreadas e cobertas de fetos; a água muito fria contornando os penedos onde, depois do banho tónico, todos recuperavam o calor como lagartos brilhantes ao som das conversas do lado. Foi ali que pela primeira vez me banhei num rio e aprendi que nadando contra a corrente não se sai do mesmo lugar. Era o Rio Homem. Seria por ali, algures no Minho, num verão quente e longe de casa, nas primeiras férias só com os amigos e tudo ainda por acontecer — entre tardes de matraquilhos na venda, os quartilhos de vinho que mais tarde ensopávamos com roscas e broa de milho ainda quentes do forno, e o jeito desenvolto dos rapazes locais que viam em mim o miúdo que veio de Lisboa — que se entreabririam as portas do desassossego. As pessoas faziam pouco do meu sotaque e perguntavam-me por Lisvoa, entre risos e uma simpatia genuinamente calorosa. Aos poucos fui relaxando e ganhando a forma do lugar, sempre tímido e silencioso, o meu olhar como uma esponja, absorvendo todas as vozes e intuindo que o verão trazia um calor que vem de dentro e se manifesta na curva dos ombros, na alça branca de uma t-shirt velha ou num calção vermelho debruado a branco. A sensualidade dos rapazes de Chorence era doce como uma ameixa madura que se nos rompe nos lábios quando a mordemos.       Numa das noites de festa, descemos à vila para ver o fogo de artifício, com morteiros que estremeciam o ar e riscavam o céu negro com rasgos de cor. Sempre me encantei com o fogo de artifício, com a emoção das explosões e a sensação de mergulho e viagem que me traziam. Foi a primeira vez que vi cair as canas dos foguetes, mas o verdadeiro tremor chegou do outro lado da praça. Ali estava ele, o cabelo negro, a camisa branca de manga curta sobre a pele muito morena, o calção acima do joelho e os sapatos de camurça azul. Filho de emigrantes, falava com sotaque francês, tinha a candura de um rapaz no verão dos seus 13 anos e uma suavidade que me atraía com o poder de um segredo. Em outros dias já o tinha visto junto ao rio com a família, mas naquela noite serpenteei decididamente entre as pessoas em festa para ver de perto a sua nuca, para lhe ouvir a voz e o riso e reparar naqueles sapatos de camurça azul. Foi a primeira vez que quis beijar um rapaz. 

Anos mais tarde, um jantar em casa de amigos da minha irmã virou festa noite adentro até não haver transportes ou dinheiro para o táxi para casa. Na hora de dormir, partilhei o sofá-cama com um rapaz que acabara de conhecer, abertamente gay e confortável na sua pele. Tudo em mim estremecia na antecipação de dormir lado a lado com um rapaz que também gostava de rapazes. Era o aproximar-me do abismo, o encarar o inalcançável, algo tão simples como dormir na mesma cama com outro homem. Não havia qualquer atração ou clima pintado, mas quando as luzes se apagaram fiquei imóvel no escuro, incapaz de dormir, a absorver o momento em que, perante todos, entreabri a porta do meu armário e me deitei numa cama com outro rapaz, ensaiando o futuro. Foi só isso, dormimos no mesmo colchão. Ele nunca soube, mas aquela noite ajudou-me a perceber, na confusão assustada dos meus 15 ou 16 anos, que sentia coisas sobre as quais não se falava no meu círculo de amigos sem desdém ou repudia, logo medo, vergonha e estigma. Precisei de alguns anos até perceber que pouco importa como os outros me olham, apenas importa a vida que levo e aqueles que amo. Nunca mais baixei os olhos quando se fala de orientação sexual, de amor e de sexo.

As primeiras vezes têm um tempo arqueológico, uma velocidade absoluta e um poder cósmico na sua capacidade de permanecer cristalizadas num momento que não para de acontecer desde a sua origem. Para o bem e para o mal, levam-nos a procurar o que nos foi revelado, despertam sonhos lindos, quase acabados e revelam cicatrizes que reconhecemos / revivemos / reparamos para seguir em frente. Nesse exercício de sobrevivência, o certo seria escorrer como o Rio Homem, onde nenhuma pedra é um obstáculo, apenas um contorno, e seguir pelo caminho de menor resistência.                                                                                 É amanhã dia 1 de agosto e tudo em mim é um fogo posto. Passaram 33 anos e lembro-me da nuca morena do rapaz do Minho, daquela voz que alternava entre o grave e o agudo e me fez querer andar de mão dada; e sobretudo, nunca esqueci os sapatos de camurça azul que me deslumbram desde aquele verão de 88. Não sei o que será feito do homem que um dia foi aquele rapaz e ele nunca saberá que, apesar de não serem de camurça azul, os sapatos que calço têm a forma que ele me deu.

 

. proximidade .

 

vejo chegar a próxima idade
e detenho-me nesse impasse.
resulto nos gestos repetidos sem causa ou direção

moo o café, os pés aquecendo o chão da cozinha
residentes da escolha, suportando a medida contrária do vazio,
sem ordem nem caos num gesto seguro

no interior da cafeteira, a água trepa a cânula trespassando o pó,
o ânimo transfigurado segue igual, mas outro,
e desagua silenciosamente na câmara superior

tudo em volta arrepela como cabelo encrespado.
sem rumo definido, o café entra encurralado em corpo incerto
e a casa contrai as linhas do seu mapa

por debaixo da porta a água desliza cobrindo o chão em silêncio
em dois tempos o estuque do teto ensopa sem se desfazer
e então eu, submerso na minha cozinha
os braços flutuando inertes ao som do tropeço cardíaco
numa inquietação apática, entregues à velocidade do sangue que desagua silenciosamente na câmara superior numa letargia lúcida, arrítmica e familiar

repete e torna . outra vez tu . da capo
a mão sobre nenhum rosto e os braços suspensos no mar imenso da cozinha
sem rima nem prosa, só fronteira e coisas pequenas, rotina e loiça por lavar

parado no semáforo da praça sem saber onde estou
a tarde impassível, o ar quente e sem direção.
e então o sinal abre e avanço sem saber

 

0008P A path

a path ­­ ⁊  daehyun kim

. sístole|diástole .

O meu nome nasceu há cem anos, numa grande guerra. O meu nome foi à guerra e perdeu e voltou para me encontrar. Com ele morreram dois irmãos, o primeiro e o segundo. Três manos, três nomes, três meses. O mais velho era pintor e os seus olhos não me dão descanso. O do meio deu o nome ao meu pai. O último esperou por mim porque somos três e eu cheguei no fim. O meu nome conjurou-me, chamou-me à praça. Sou o terceiro e só comecei a chamar-me Pietro quando percebi que éramos inseparáveis, o nome e eu. Mais tarde veio a história daqueles que vieram primeiro e do homem em que me tornei. Antes de mim, o meu tio e o meu pai,  guardiões absolutos dos três nomes, estafetas de um lume ileso. Quando chegou a minha vez bastou um só. Não sou o primeiro nem o segundo, sou o terceiro.
O meu nome é curioso e encanta, faz perguntar e traz sorrisos à conversa, condensa-se  como um cheiro — pousa e fica. É todo por ordem e olha-me de frente, é bicho de instinto, é curso de água ligeira e cadeira na fila da frente. Tomo o chão que ele me dá e digo-lhe as coisas que ninguém me diz, digo-lhe tudo sem temer o ridículo.
Esse nome é mais que o meu nome, veio de uma montanha que se vê ao longe, é uma raíz comprida onde sou o arco, a corda tensa, a flecha e a ferida por onde a ponta sai. É um barco a desbravar uma língua nova, a bolinar na sua própria brisa, são os trópicos apeninos de Lisboa, é um bosque na praia. Ele não me prende nem me pertence.
Ser o último é quase não ser, quase voltar a nascer a dizer que sim de cor, de coração. O que sabe o mundo da minha pele, da extensão da sua flor, essa fronteira imensa; ou da memória toda? Em cada poro um dente-de-leão, um figo temporão fechado numa mão em concha.
Esse que é o meu nome veio de um lugar febril esquecido que une as pontas soltas, um promontório cortado a horizonte, primordial e feérico onde começam e acabam as coisas. Ali me vi grande e pequeno e o meu corpo atirado, vi o princípio e o fim quase iguais, um lugar preenchido onde somos fruta de verão, seca para o inverno. Eu estava todo inteiro de amor e vontade e desejo e querer, velho e sem arrependimentos, mas a mentir porque os tinha. Nesse lugar onde tudo existe em permanência, cada respiração é a vida inteira e as lágrimas saem em três, como os nomes. Nessa febre que sou eu, que é o lugar onde regresso, estou eu ra|paz e desassossego, deitado no chão com o sol ao meu lado a cobrir a nossa pele, a minha e a dele, onde tudo é pleno e verão eterno, onde nasce o primeiro toque, o primeiro beijo a cada instante e cada instante é fruta mordida a rebentar em veludo. Na febre sou esse amor primeiro, sou o toque suave de um dedo, do segundo e do terceiro e depois mais perto, mais perto, no mesmo sítio, de olhos abertos — sístole|diástole — olhos fechados; o mundo inteiro em duas folhas de erva. Chego-me aos seus lábios e guardo naquele instante a fonte onde sei que nunca me faltará a sede.

 

. to infinity and beyond .

Esta semana faz 40 anos que foram lançadas as sondas espaciais Voyager, as naves mais incríveis de sempre, o expoente máximo do engenho e do romantismo. Com elas, o bater do nosso coração forte, a nossa música, as nossas vozes viajam no espaço. A última fotografia que a Voyager tirou foi a do pálido ponto azul – o ponto azul onde tudo acontece, onde viveram todas as pessoas que existiram, que amaram, que olharam para o céu com espanto. Foi no dia dos namorados, em 1990.
Quando a Terra desaparecer, as Voyager vão continuar a sua viagem. Ontem, 25 de agosto, fez 5 anos que uma delas deixou o sistema solar – um pequeno silêncio seguido de um assobio, a sonda a dizer-nos que está fora da bolha onde sopram os ventos solares.
Hoje ao sair de casa reparei no recorte das árvores no céu azul turquesa e numa nuvem cheia de qualquer coisa que não sei explicar. Ao mesmo tempo, a canção que ouvia, disse: et alors, que restera-t-il de nous? e emocionei-me. Com o céu azul e uma nuvem branca.
Que bom não ter de esperar ser um Palomar para me espantar com o que vejo. Quem me dera ser inteiro como a água, como o mar como está hoje: não uma massa, mas cheio de textura e especificidade a cada instante.

. 26 agosto 2017 .

 

. pl pl pl .

 

Canto o meu corpo sozinho ao sol. É o que isto é, um momento sozinho.
Canto o chão bruto e inexorável do caminho até chegar a casa. Canto o barco para a outra margem, as linhas do comboio. Canto o terreno dos feitiços e a sombra que espera sempre por si, a árvore da salvação, a pedra da rolha. Canto a água da chuva na cisterna e a arruda na última curva. Canto as boas noites, as bocas de lobo, canto o sol que almareia. Canto as figueiras e farrobeiras, canto a água da fonte no garrafão, os limões do Florêncio, o pão dos Madeirinhas. Canto as pinhas da venda da Olímpia, canto o miso e o mingau. Canto as horas todas, canto uma história, canto o inverno e o verão. Danço o nosso ontem, levo tudo à frente, urgente. Danço para não me esquecer da vontade de ter vontade, urgente.

♦  E se bem te lembras quando andávamos os dois a deambular por aí sem procurar nada, tantas coisas nos aconteciam e tudo corria como um rio   ♦

Agora fica tudo mais quieto, o silêncio. Fica o som dos meus pés no chão da cozinha, a ladainha do pequeno almoço enquanto mastigo, o zumbido agudo e sempre presente nos ouvidos, o silêncio. Apenas a quietude imensa, surda, uma imobilidade generosa e febril, sem distração. Esta cartografia tem um vazio, todo ele presença irascível, anarca-genética e inteira. Uma força imensa, destravada, incondicional e sem critério – como uma fé. Que seria de mim sem a parte que vem dela, neste momento onde tudo cabe, que tudo consome e nunca se esgota – nesta pena resoluta, nesta singularidade absoluta.

 

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. raio negro .

trovões são bons sons que me confortam.
sou abraçado quando o céu estremece. protegido, até.
o som de penedos rasgados, montanhas derrocadas
a destruição invisível do que não tem forma
um colo no silêncio que antecipa o estrondo.
fico entregue à luz e ao som, encontro refúgio na meteorologia feroz.
sempre que posso, observo a tempestade.
⚡︎
a minha irmã tem medo, já teve ou já não sei.
por isso penso nela quando troveja. ligo-lhe.
da última vez ela descartou o desconforto
que as trovoadas sempre lhe trouxeram.
talvez eu já não tenha a certeza,
mas gosto de pensar nela quando oiço trovões.
assim é que está certo.
⚡︎
oiço a trovoada e lembro-me que sou apenas eu,
despido no capim comprido
descalço e inteiro, molhado pela chuva.
perante o trovão sou um minúsculo enorme
imortal perecível, um gigante impossível.
uma vez senti o calor de um relâmpago no rosto
foi o mais próximo que estive de um raio sem me apaixonar.

2016 04 15 trovoada© margarida

. pálido azul .

Somos um pálido ponto azul, não é? Já lá vamos.
Quando os anos cabiam em duas mãos e a televisão era finalmente a cores, as missões espaciais eram momentos de excitação. Ali estava um foguetão enorme e a expectativa dos lançamentos e aterragens do Vaivém espacial. O auge da tecnologia, a derradeira fronteira, a grande evasão. O Vaivém era a nave que viajava no Espaço e aterrava na Terra, coberto por placas de cerâmica que suportavam as altas temperaturas da fricção provocada pela reentrada na atmosfera… eu quase parava de respirar. Numa aterragem assistida em direto, mal o Vaivém tocou no chão eu cortei o silêncio da sala e disse: fantástico! Segundos depois, o locutor repete: fantástico! E era.
As viagens espaciais eram o expoente máximo do sonho. Há fascínio maior do que a terra vista lá de cima onde as planícies não têm fim? Do que ver o pontinho azul que a Voyager 1 nos mostrou ou saber que aquela sonda irá viajar até aos limites do nosso sistema, enviar-nos fotografias de planetas tremendamente distantes e continuar a explorar o espaço até perder a autonomia? Naquela altura, com os anos contados na segunda mão, essa longevidade não era palpável. Trinta e nove anos depois do lançamento das Voyager, ainda não é. Elas continuam a sua missão e já se encontram fora do sistema solar, no espaço interestelar. Estima-se que até 2025/30 irão continuar a enviar leituras, altura em que deixarão de ter energia para acionar os seus instrumentos. Mas não vão deixar de viajar pelo espaço a uma velocidade incrível, levando consigo os míticos discos dourados com sons e imagens da Terra – tudo com tecnologia dos meados dos anos 70 e uma capacidade de memória ridícula para os dias de hoje. fantástico .
A exploração espacial e o Cosmos do Carl Sagan andavam de mãos dadas com a fantasia do Star Wars, a distopia Cylónica da Galáctica e as orelhas bicudas do Mr. Spock. O meu kispo vermelho era um fato espacial alienígena, eu viajava na Millennium Falcon, ouvia a voz do R2 na bomba de ar da minha bicicleta e queria visitar o covil do Jabba. Fascinava com as naves do Space 1999 – as Eagles – e até via o Buck Rogers (péssimo, eu sei), mas o regresso a casa era sempre no Space Shuttle, o nosso Vaivém. Era lindo, era branco e era real.
Um dia, e depois de adiamentos sucessivos devido ao mau tempo, vimos o impensável: o Challenger explodiu durante o lançamento com 7 astronautas a bordo. O desastre tornou-se maior pela presença da professora que ia dar uma aula a partir do espaço para as crianças na Terra. Parou tudo.
O acesso ao Espaço não eram favas contadas.
Durante 3 anos a NASA suspendeu as missões e o Hubble teve de esperar por 1990. Depois de lançado, descobriu-se que era míope devido a um defeito num espelho – o Hubble precisava de óculos. Corrigido o erro, chegaram-nos imagens magníficas da formação de estrelas.
Trinta anos depois do Challenger, quase quarenta anos desde o lançamento das manas Voyager e do lançamento do Star Wars, voltamos a olhar para cima. Em 2013, o astronauta Chris Hadfield cantou o Space Oddity na Estação Espacial Internacional, dando-lhe o cenário mais que perfeito. Em 2015, a NASA lança o conteúdos dos discos dourados no SoundCloud e voltámos a voar a bordo da Millennium Falcon. Em 2016, o mundo estremeceu com a partida do homem que caiu na Terra, o homem das estrelas que nos arrebatou a mente porque sabia que valia a pena. Olhamos para cima para confirmar que foi bom perdermo-nos e usarmo-nos de tudo o que nos trouxe, que só nos resta dançar no pálido ponto azul onde tudo acontece – azul como o olho desse homem. 
E disse o Sagan: Consideremos de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós.

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. volto a ser quem não era .

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Nesta fotografia tenho 17 anos. Ou 18, não sei bem.
Era noite, fim de verão e eu tinha acabado de voltar do Algarve, do cerro onde estivera a apanhar alfarroba com a minha tia Ofélia. Trabalhava das 9 às 6, a varejar árvores, curvado a apanhar alfarroba do chão, a ensacar cesto após cesto. No calor de agosto, enquanto todos estavam na praia, as minhas férias foram a viver no campo, trabalhar na apanha, receber à sexta feira, comprar comida para a semana e repetir o ciclo 5 vezes. Quando voltei, cheguei assim: a pele morena, os olhos doces, crianço por fora e enorme por dentro. Na altura não me dei conta, mas trocar o grupo de pseudo-amigos por aquilo fez toda a diferença. Podia ter sido um verão adolescente, mas foi um verão charneira. Aprendi a racionar água, alombei tudo às costas por caminhos de cabras e quase perdi um olho quando uma alfarroba caiu a pique e aterrou na minha córnea. Conheci 2 homens que perderam um olho assim:
O Vitorino de Estoi, que emigrou para a Argentina nos anos 70/80. Ele trabalhou muito, um dia ganhou a lotaria e comprou um camião. Ele não sabia conduzir, mas arrancou estrada fora. Como não sabia travar, só parou quando acabou a gasolina. E o Toy, que tinha uma banca de peixe no mercado de Olhão e vendia ganza nas horas vagas. A minha visão ficou turva durante uns dias, mas fiquei bem.
Trabalhei na apanha com a Evangelina, a Elvira, o Analídio e o Zé. O Analídio e a Elvira eram um casal e eram os patrões. Ela era muito gorda, falava depressa e tinha um cão mínimo chamado Sassá; a ‘Vangelina tinha uma Casal Boss, estava sempre a meter sexo nas conversas e queria levar-me para trás de uma moita para eu me trompicar com ela; o Analídio era um homem franzino e seco que falava arrastado e tossia uma mistura de riso com o cigarro apagado no canto da boca e o Zé era um pachola de poucas falas. Na campanha da alfarroba, os homens varejavam e as mulheres apanhavam. Eu fazia as duas coisas.
Também conheci a Maria Zorra, uma velha rija com cataratas nos olhos, que vivia na encosta do cerro. Era mãe do Analídio. Um dia a minha tia perguntou-lhe: Ó Maria, afinal quantos anos é que tu tens?
A Maria gritou para o marido Zé – a quem também faltava um olho, portanto afinal conheci 3: Ó Zé, quantos anos é que eu tenho? E o Zé respondeu: 30.
Trinta anos, Ofélia. Os anos que uma pessoa vive.
Nesta fotografia estou na cozinha a olhar para alguém, na noite em que voltei do cerro. Por cima da cabeça, um saco cheio de louros. Hoje olho para a fotografia. Vejo como a minha cara entretanto mudou, vejo que eu afinal era bonito e não sabia, que ficou tanta coisa definida naquele verão.

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Esta outra tem escrito por trás: Faro, Dezembro 2001. Eu tinha 27.
Nesse ano trabalhei com a Marília em dois ateliers para crianças. Este chamava-se Mostra-me o Teu Umbigo. Partindo do corpo e da noção de joia e de adorno, as crianças criavam, em pares, joias para o corpo do outro com fotografias. O mote era a transformação do corpo. Andámos por todo o país, uma semana em cada lugar.
Aqui a minha cara já tinha mudado. Tenho um anel de prata, um brinco no nariz, um piercing na língua, um anel no dedo do pé, uma coroa na cabeça e um anel para dois dedos. Estou a sorrir para a câmara, a tentar replicar a cara dos miúdos quando eram fotografados. O que me fascina nesta fotografia é precisamente esse ar de inocência. Porque 2001 foi o ano em que a perdi a golpes largos. Naquela altura disse muitas vezes que me a tinham tirado, mas entretanto percebi que é mesmo assim, vai-se. Nesta fotografia ainda sou um bocadinho imortal.
Aquele meu olhar não dá descanso aos meus olhos. Fixa-me ao longe e sorri-me. Eu estava longe de estar feliz, mas estava. Quando fiz esta fotografia, estava. No dia seguinte casaram dois amigos e fui padrinho pela primeira vez. Era tudo agridoce.
Olho para as duas fotografias e vejo princípios e fins. Nas duas pareço-me comigo.

. ♥ .

Não caímos, somos empurrados. Temos medo e reinventamo-nos sem nos dar conta – à mesa, no carro, lá fora, a olhar para a lareira ou com os pés dentro de água. E somos corajosos, porque ninguém nos ensina a lidar com aquilo. Cada caso é um caso, como no cancro. Naqueles meses a casa encheu-se de gente que chegava e partia, sempre uma festa, sempre a chuva e o vento e o adormecer a olhar o fogo. Depois, foi o Verão™ que definiu muito do que sou hoje, um desassossego diferente, que fez com que eu quisesse ser um homem melhor, que me empurrou para um sítio que eu não sabia que existia.
Este ano, com o aproximar da data, estou mais atento às histórias que tocam a minha – mentira, estou sempre atento – e ouvi alguém dizer isto:

– There is a club – the Dead Dad’s Club – and you can’t be in it until you’re in it.
You can try to understand, you can sympathize, but until you feel that loss…
My dad died when I was 9. George, I’m really sorry you had to join the club.

– I…  I don’t know how to exist in a world where my dad doesn’t…

– Yeah, that never really changes.

Não deixa de ser estranho sentir saudades daquela altura, mas sinto. Por ter sido tudo tão verdade, por ter sido um período estrutural para onde fui empurrado, onde só contava o que era mesmo importante. A partir daí fiz escolhas e tomei decisões. Também me deixo distrair com coisas sem importância e levanto problemas onde não é necessário, mas volto sempre a esse momento de verdade, onde só são importantes as pessoas que eu amo. Tudo o resto são distracções.
Aos que já cá estavam, aos que chegaram depois, quero-vos tanto e muito, sempre.

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. obrigada meu senhor boa sorte minha senhora .

ela abordou-me numa esquina, disse alguém me ajude que estou desesperada eu disse diga-me, ela disse é um cavalheiro, não é? eu disse sou. ela tinha uma catarata num olho e só via vultos. disse-me estou desesperada, nunca pensei chegar a isto, o dono da residencial onde agora vivo ameaça meter-me fora e eu sem dinheiro. falava-me em voz alta, os dois parados numa esquina de uma grande avenida, gente a passar. nunca pensei chegar a isto sou licenciada em letras e filosofia e agora estou a pedir ajuda no meio da rua. a minha carteira a abrir, a minha mão a estender-lhe os dez euros que tinha. é o que tenho, espero que ajude. muito obrigado disse ela em voz alta, foi jesus foi jesus, não minha senhora foi a senhora que se chegou à frente e pediu ajuda e fui eu que parei para a ouvir e ajudei, não foi jesus, fomos nós os dois. mas foi jesus quem o enviou para me ajudar, que não, insisti, fomos nós os dois, jesus não é para aqui chamado. sou formada em letras e filosofia, repetia ela num mantra desesperado, a voz aflita a subir-lhe pelo pescoço enrugado, aquele olho que me olhava sem me ver e guardava a lua lá dentro, o cabelo muito branco, ela muito baixa, o olhar vago a lançar um pedido como uma rede para o ar à sua volta. chega uma pessoa a isto, nunca pensei. boa sorte desejei eu quando me despedi e lhe larguei as mãos que estavam agarradas às minhas desde que lhe passei o dinheiro que tinha. obrigada meu senhor boa sorte minha senhora e atravessei a rua, gente a passar gente parada a ouvir a olhar para mim a olhar para ela. e senti-me mal, nada de me sentir bem por ter ajudado. segui pelo passeio a sentir-me mal pelo meu gesto inconsequente. ela já não é ela como se conhecia até aqui. posso ser eu daqui a trinta anos. pensei: eu tenho amigas formadas em filosofia, eu não sou formado em coisa nenhuma. pensei: o nosso futuro também pode desaguar na esquina de uma grande avenida a dizer alto está aí alguém? a um cavalheiro que passa. e se esse cavalheiro parar para me ouvir e ajudar, que se sinta melhor consigo mesmo no silencio de quem ajuda quem não conhece. que ele se sinta bem porque eu não fui capaz.

2014 04 19 as senhoras cegas falam comigo

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