. rio homem .
Há verões que apontam o caminho, que ressoam indefinidamente como uma canção que sabemos de cuore e se tornam o rochedo onde embatem todas as marés. Assim foi o verão dos meus 13 anos, num ano de capicua e de primeiras vezes. Nas vésperas de ir de férias com amigos, assisti ao meu primeiro concerto rock. Durante dias tentei ganhar coragem para pedir ao meu pai que me deixasse ir, mas sabia que o não era certo. A noite do concerto chegou e vi as horas passar, imaginei o concerto a decorrer sem mim e fechei-me no quarto, resignado. No dia seguinte, ouvi na rádio que a banda tocava três datas, sendo a última no domingo à tarde — domingo. à tarde. Determinado, apanhei o autocarro 28 para o Restelo, onde cheguei muito cedo. Ao Pavilhão d’Os Belenenses foram chegando os elementos da banda e a todos estendi o módulo do autocarro que todos acabaram por autografar — um primeiro tesouro que foi alvo de inveja na minha rua. Empoleirado no gradeamento da frente, assisti sozinho ao concerto dos Xutos & Pontapés e a minha cabeça abriu com a magnitude eletrizante do “ao vivo” da minha então banda favorita. Foi a 31 de julho de 1988. O dia seguinte seria 1 de agosto e tudo em mim era um fogo posto — e sim, foi épico ouvir o tema naquele dia.
Uns dias depois segui para o Minho. O comboio avançava na direção de tudo aquilo que eu não podia imaginar e o futuro próximo assumia contornos indistintos à distância. Era a promessa pré-adolescente de uma vida por estrear, como um par de sapatos novos com os quais temos todo o cuidado nos primeiros dias, mas que calçamos com displicência depois de se ajustarem à forma do nosso corpo. Eu ia um pouco a medo, sem saber se a amizade que tinha com aquele grupo de rapazes seria coesa o suficiente para duas semanas de férias. Todos eles tinham família no campo e eu era da cidade, tinham a desenvoltura de uma infância com idas frequentes à terra, das chinchadas, do jogar à bola e das vozes assertivas. Eu não era assim, não encaixava e não sabia porquê. Sabia que estava sozinho e que iria ser sempre assim. Chegados à vila em pleno Gerês, uma estrada subia o monte para o lugar onde acampámos no quintal da avó do Miguel, entre o espigueiro e a fonte onde, todas as manhãs, um garnisé de canto rouco e entrecortado rompia a lona da tenda canadiana e nos arrancava do sono. Lá em baixo, a vila e as festas de verão, e o rio onde todos iam nas tardes quentes, espalhados pelas margens sombreadas e cobertas de fetos; a água muito fria contornando os penedos onde, depois do banho tónico, todos recuperavam o calor como lagartos brilhantes ao som das conversas do lado. Foi ali que pela primeira vez me banhei num rio e aprendi que nadando contra a corrente não se sai do mesmo lugar. Era o Rio Homem. Seria por ali, algures no Minho, num verão quente e longe de casa, nas primeiras férias só com os amigos e tudo ainda por acontecer — entre tardes de matraquilhos na venda, os quartilhos de vinho que mais tarde ensopávamos com roscas e broa de milho ainda quentes do forno, e o jeito desenvolto dos rapazes locais que viam em mim o miúdo que veio de Lisboa — que se entreabririam as portas do desassossego. As pessoas faziam pouco do meu sotaque e perguntavam-me por Lisvoa, entre risos e uma simpatia genuinamente calorosa. Aos poucos fui relaxando e ganhando a forma do lugar, sempre tímido e silencioso, o meu olhar como uma esponja, absorvendo todas as vozes e intuindo que o verão trazia um calor que vem de dentro e se manifesta na curva dos ombros, na alça branca de uma t-shirt velha ou num calção vermelho debruado a branco. A sensualidade dos rapazes de Chorence era doce como uma ameixa madura que se nos rompe nos lábios quando a mordemos. Numa das noites de festa, descemos à vila para ver o fogo de artifício, com morteiros que estremeciam o ar e riscavam o céu negro com rasgos de cor. Sempre me encantei com o fogo de artifício, com a emoção das explosões e a sensação de mergulho e viagem que me traziam. Foi a primeira vez que vi cair as canas dos foguetes, mas o verdadeiro tremor chegou do outro lado da praça. Ali estava ele, o cabelo negro, a camisa branca de manga curta sobre a pele muito morena, o calção acima do joelho e os sapatos de camurça azul. Filho de emigrantes, falava com sotaque francês, tinha a candura de um rapaz no verão dos seus 13 anos e uma suavidade que me atraía com o poder de um segredo. Em outros dias já o tinha visto junto ao rio com a família, mas naquela noite serpenteei decididamente entre as pessoas em festa para ver de perto a sua nuca, para lhe ouvir a voz e o riso e reparar naqueles sapatos de camurça azul. Foi a primeira vez que quis beijar um rapaz.
Anos mais tarde, um jantar em casa de amigos da minha irmã virou festa noite adentro até não haver transportes ou dinheiro para o táxi para casa. Na hora de dormir, partilhei o sofá-cama com um rapaz que acabara de conhecer, abertamente gay e confortável na sua pele. Tudo em mim estremecia na antecipação de dormir lado a lado com um rapaz que também gostava de rapazes. Era o aproximar-me do abismo, o encarar o inalcançável, algo tão simples como dormir na mesma cama com outro homem. Não havia qualquer atração ou clima pintado, mas quando as luzes se apagaram fiquei imóvel no escuro, incapaz de dormir, a absorver o momento em que, perante todos, entreabri a porta do meu armário e me deitei numa cama com outro rapaz, ensaiando o futuro. Foi só isso, dormimos no mesmo colchão. Ele nunca soube, mas aquela noite ajudou-me a perceber, na confusão assustada dos meus 15 ou 16 anos, que sentia coisas sobre as quais não se falava no meu círculo de amigos sem desdém ou repudia, logo medo, vergonha e estigma. Precisei de alguns anos até perceber que pouco importa como os outros me olham, apenas importa a vida que levo e aqueles que amo. Nunca mais baixei os olhos quando se fala de orientação sexual, de amor e de sexo.
As primeiras vezes têm um tempo arqueológico, uma velocidade absoluta e um poder cósmico na sua capacidade de permanecer cristalizadas num momento que não para de acontecer desde a sua origem. Para o bem e para o mal, levam-nos a procurar o que nos foi revelado, despertam sonhos lindos, quase acabados e revelam cicatrizes que reconhecemos / revivemos / reparamos para seguir em frente. Nesse exercício de sobrevivência, o certo seria escorrer como o Rio Homem, onde nenhuma pedra é um obstáculo, apenas um contorno, e seguir pelo caminho de menor resistência. É amanhã dia 1 de agosto e tudo em mim é um fogo posto. Passaram 33 anos e lembro-me da nuca morena do rapaz do Minho, daquela voz que alternava entre o grave e o agudo e me fez querer andar de mão dada; e sobretudo, nunca esqueci os sapatos de camurça azul que me deslumbram desde aquele verão de 88. Não sei o que será feito do homem que um dia foi aquele rapaz e ele nunca saberá que, apesar de não serem de camurça azul, os sapatos que calço têm a forma que ele me deu.
