. obrigada meu senhor boa sorte minha senhora .

by Os dias do meio

ela abordou-me numa esquina, disse alguém me ajude que estou desesperada eu disse diga-me, ela disse é um cavalheiro, não é? eu disse sou. ela tinha uma catarata num olho e só via vultos. disse-me estou desesperada, nunca pensei chegar a isto, o dono da residencial onde agora vivo ameaça meter-me fora e eu sem dinheiro. falava-me em voz alta, os dois parados numa esquina de uma grande avenida, gente a passar. nunca pensei chegar a isto sou licenciada em letras e filosofia e agora estou a pedir ajuda no meio da rua. a minha carteira a abrir, a minha mão a estender-lhe os dez euros que tinha. é o que tenho, espero que ajude. muito obrigado disse ela em voz alta, foi jesus foi jesus, não minha senhora foi a senhora que se chegou à frente e pediu ajuda e fui eu que parei para a ouvir e ajudei, não foi jesus, fomos nós os dois. mas foi jesus quem o enviou para me ajudar, que não, insisti, fomos nós os dois, jesus não é para aqui chamado. sou formada em letras e filosofia, repetia ela num mantra desesperado, a voz aflita a subir-lhe pelo pescoço enrugado, aquele olho que me olhava sem me ver e guardava a lua lá dentro, o cabelo muito branco, ela muito baixa, o olhar vago a lançar um pedido como uma rede para o ar à sua volta. chega uma pessoa a isto, nunca pensei. boa sorte desejei eu quando me despedi e lhe larguei as mãos que estavam agarradas às minhas desde que lhe passei o dinheiro que tinha. obrigada meu senhor boa sorte minha senhora e atravessei a rua, gente a passar gente parada a ouvir a olhar para mim a olhar para ela. e senti-me mal, nada de me sentir bem por ter ajudado. segui pelo passeio a sentir-me mal pelo meu gesto inconsequente. ela já não é ela como se conhecia até aqui. posso ser eu daqui a trinta anos. pensei: eu tenho amigas formadas em filosofia, eu não sou formado em coisa nenhuma. pensei: o nosso futuro também pode desaguar na esquina de uma grande avenida a dizer alto está aí alguém? a um cavalheiro que passa. e se esse cavalheiro parar para me ouvir e ajudar, que se sinta melhor consigo mesmo no silencio de quem ajuda quem não conhece. que ele se sinta bem porque eu não fui capaz.

2014 04 19 as senhoras cegas falam comigo