. volto a ser quem não era .
by Os dias do meio
Nesta fotografia tenho 17 anos. Ou 18, não sei bem.
Era noite, fim de verão e eu tinha acabado de voltar do Algarve, do cerro onde estivera a apanhar alfarroba com a minha tia Ofélia. Trabalhava das 9 às 6, a varejar árvores, curvado a apanhar alfarroba do chão, a ensacar cesto após cesto. No calor de agosto, enquanto todos estavam na praia, as minhas férias foram a viver no campo, trabalhar na apanha, receber à sexta feira, comprar comida para a semana e repetir o ciclo 5 vezes. Quando voltei, cheguei assim: a pele morena, os olhos doces, crianço por fora e enorme por dentro. Na altura não me dei conta, mas trocar o grupo de pseudo-amigos por aquilo fez toda a diferença. Podia ter sido um verão adolescente, mas foi um verão charneira. Aprendi a racionar água, alombei tudo às costas por caminhos de cabras e quase perdi um olho quando uma alfarroba caiu a pique e aterrou na minha córnea. Conheci 2 homens que perderam um olho assim:
O Vitorino de Estoi, que emigrou para a Argentina nos anos 70/80. Ele trabalhou muito, um dia ganhou a lotaria e comprou um camião. Ele não sabia conduzir, mas arrancou estrada fora. Como não sabia travar, só parou quando acabou a gasolina. E o Toy, que tinha uma banca de peixe no mercado de Olhão e vendia ganza nas horas vagas. A minha visão ficou turva durante uns dias, mas fiquei bem.
Trabalhei na apanha com a Evangelina, a Elvira, o Analídio e o Zé. O Analídio e a Elvira eram um casal e eram os patrões. Ela era muito gorda, falava depressa e tinha um cão mínimo chamado Sassá; a ‘Vangelina tinha uma Casal Boss, estava sempre a meter sexo nas conversas e queria levar-me para trás de uma moita para eu me trompicar com ela; o Analídio era um homem franzino e seco que falava arrastado e tossia uma mistura de riso com o cigarro apagado no canto da boca e o Zé era um pachola de poucas falas. Na campanha da alfarroba, os homens varejavam e as mulheres apanhavam. Eu fazia as duas coisas.
Também conheci a Maria Zorra, uma velha rija com cataratas nos olhos, que vivia na encosta do cerro. Era mãe do Analídio. Um dia a minha tia perguntou-lhe: Ó Maria, afinal quantos anos é que tu tens?
A Maria gritou para o marido Zé – a quem também faltava um olho, portanto afinal conheci 3: Ó Zé, quantos anos é que eu tenho? E o Zé respondeu: 30.
Trinta anos, Ofélia. Os anos que uma pessoa vive.
Nesta fotografia estou na cozinha a olhar para alguém, na noite em que voltei do cerro. Por cima da cabeça, um saco cheio de louros. Hoje olho para a fotografia. Vejo como a minha cara entretanto mudou, vejo que eu afinal era bonito e não sabia, que ficou tanta coisa definida naquele verão.
Esta outra tem escrito por trás: Faro, Dezembro 2001. Eu tinha 27.
Nesse ano trabalhei com a Marília em dois ateliers para crianças. Este chamava-se Mostra-me o Teu Umbigo. Partindo do corpo e da noção de joia e de adorno, as crianças criavam, em pares, joias para o corpo do outro com fotografias. O mote era a transformação do corpo. Andámos por todo o país, uma semana em cada lugar.
Aqui a minha cara já tinha mudado. Tenho um anel de prata, um brinco no nariz, um piercing na língua, um anel no dedo do pé, uma coroa na cabeça e um anel para dois dedos. Estou a sorrir para a câmara, a tentar replicar a cara dos miúdos quando eram fotografados. O que me fascina nesta fotografia é precisamente esse ar de inocência. Porque 2001 foi o ano em que a perdi a golpes largos. Naquela altura disse muitas vezes que me a tinham tirado, mas entretanto percebi que é mesmo assim, vai-se. Nesta fotografia ainda sou um bocadinho imortal.
Aquele meu olhar não dá descanso aos meus olhos. Fixa-me ao longe e sorri-me. Eu estava longe de estar feliz, mas estava. Quando fiz esta fotografia, estava. No dia seguinte casaram dois amigos e fui padrinho pela primeira vez. Era tudo agridoce.
Olho para as duas fotografias e vejo princípios e fins. Nas duas pareço-me comigo.