. Os dias do meio .

. Ziggy Stardust .

◆ Setembro ◆
A caminho do Meco com a Marta ela diz-me que quase não conhece a música da Joni Mitchel. Eu ato-a a um cacto no deserto, rasgo-lhe as roupas e afirmo sereno: se eu tivesse de escolher uma única voz feminina para ouvir até ao fim da vida, seria ela.
E se tivesses de escolher uma voz masculina?
Não sei se consigo.
Seguimos pinhal adentro. Passo a vida em revista na minha cabeça, a ter de fazer uma escolha aparentemente impossível.
Ai Marta não consigo! menti eu sem querer.
Alguns metros por segundo depois respondi: David Bowie.
Se eu tivesse de escolher um, seria ele. Acompanha-me desde sempre, ensinou-me a expandir os meus limites. Quando flutuo à superfície ou mergulho no mais escuro dos fundos, ele está lá. Ele é o homem, escolho o Bowie.
Bem escolhido! sorri a Marta.

◆ Dezembro ◆
Na segunda-feira fiquei com o bebé enquanto os pais foram fazer as últimas compras. Depois de um passeio pelo bairro a apontar para as plantas e para as luzinhas nas montras, voltámos para casa e ponho música a tocar. Escolhi o Bowie e comecei a dançar com o Eduardo no colo. Ele começou a sorrir e a dançar comigo – ele sorria e eu cantava. Cantei uma, cantei duas, dançámos 5 e ele não deu sinais de se fartar. Cantei o “Changes” e o espaço na garganta apertou-se. Eu ali no meio da sala, a dançar com o bebé da minha irmã no colo como se segurasse o meu passado e o meu futuro. Eu a cantar-lhe sobre as coisas que nos apertam e nos empurram e nos fazem crescer, eu à flor da pele a trocar calor com este menino que rasga sorrisos quando me vê. Eu, Pietro homem, em tempos adolescente imortal, todo eu imortal de novo com o amor nos braços – three… two… one… liftoff…
Naquele instante estou a passar-lhe tudo o que sei, estou a aprender tudo com ele. Sinto-me a flutuar, consciente do tamanho das coisas, grandes e pequenas. Ensino-o a dançar e sinto-me mais homem que ontem. Quando rodopiei ao som do Ziggy Stardust ele abriu os braços e inclinou a cabeça para trás como uma estrela de glam-rock. Repeti o gesto e ele fez o mesmo! Tenho este menino nos braços e sinto-me cheio. Vou a mil e cristalizo esta dança para sempre. Este menino com 10 meses no meu colo é o meu sobrinho a curtir o Bowie e fui eu que dancei com ele.
. Planet earth is blue and there’s nothing I can do .

(30 Dezembro 2012)

2012 12 24 - Ziggy Stardust

. Existir vírgula ponto .

Estava a fazer café de manhã e pensei nos lugares onde já estive. Sítios que estão longe, onde a minha realidade foi diferente e eu me senti mais eu do que o costume. Alguns eram feios, outros magníficos, outros não deixaram memória. Nesses lugares eu era outro e o meu estado de graça também.
Fico siderado quando penso que todos esses lugares existem em simultâneo, que estão lá, mesmo quando eu não estou. Quanto de mim ficou para trás – as unhas que cortei, a pele morta, os subprodutos da minha digestão – e quanto de cada lugar ficou preso nos meus pulmões, nas células do meu corpo, nos recantos do meu intestino, onde um berlinde pode viver 20 anos sem que eu me dê conta?

Paro uns segundos com a colher enterrada no café moído – estou a fazer uma lista mental de sítios incríveis ou simplesmente banais. Alguns que nunca mais vou visitar, outros que não quero voltar a ver, mas por onde passei. A esquina em Bangalore onde bebi um caldo de cana num copo comunitário, as escadas do centro comercial do cacém, uma rua a caminho de casa em Alfama, o caminho de cabras de Estoi, o alpendre da palafita onde morei 1 semana na selva do Laos, a Coldharbour Lane em Londres, uma açoteia em Marrocos, o quarto do Ibis de beira-de-estrada nos subúrbios de Paris ou o Zé sapateiro do antigo prédio da minha avó.

Recordo uma tira da Mafalda em que o Felipe imaginava um mundo sem distâncias – ideia aterrorizadora que o faz desmaiar. Eu imagino os sítios sem mim e parecem-me mentira. O mundo só existe quando eu estou lá. A famosa árvore só faz barulho ao cair na floresta se eu estiver lá. A estrada que conduzo à noite só se materializa à medida que avanço e os faróis afagam o vazio. Os brinquedos só ganham vida quando eu não estou. Estas são verdades tão absolutas quanto um Amén ou Insha’Allah.

Não há provas – até hoje não há uma única prova – de que os Deuses existem. Está tudo nos olhos de quem vê, no coração de quem sente, na cabeça de quem imagina, acredita e diz. São redes de suporte que se criam para ser mais fácil existir sem um sentido predestinado. É mais fácil acreditar num Deus do que aceitar que a vida não tem mais sentido que ela própria. Existir vírgula ponto. É mais fácil acreditar num impossível escrito por homens há milhares de anos do que na realidade que se cria todos os dias. É mais fácil dizer feliz natal do que dizer eu não acredito.
Eu não tenho nada contra as fantasias, mas prefiro ser eu a inventar as minhas. Eu não acredito.

(21 Dezembro 2012)

2012 12 21 - Existir vírgula ponto

. Partículas de pó .

Lembro-me de ser pequeno e olhar as partículas de pó apanhadas em pleno ar pelo sol que entrava no meu quarto. Ficava a olhar para elas, a pensar como eram tão pequenas e leves que não caíam, tão leves que bastava eu mexer a mão e elas logo reviravam no ar do meu quarto. Conforme lhes batia o sol, brilhavam como estrelas e eu era um gigante. Às vezes fixava uma delas e seguia-a até me distrair com outra coisa qualquer. Nesses momentos de quase nada eu dizia a mim mesmo: tens de te lembrar disto daqui a muitos anos. Este preciso momento em que estás a ver isto, a pensar isto e a dizer a ti mesmo: tens de te lembrar disto daqui a muitos anos.

Quando eu era pequeno gostava de encostar o ouvido na barriga do meu pai e ouvi-lo falar. Ouvia a voz dele cá fora por uma orelha, e pela outra, a voz abafada e interior do meu pai. Pelo meio escutava o respirar e os pequenos sons internos que um corpo faz. Aquilo confortava-me. Era como estar debaixo de água dentro de casa, era uma quase canção de embalar sem melodia, um colo sem que me pegassem. Eram coisas que eu não partilhava com ninguém, tudo se passava cá dentro. E eu sabia que ia ser sempre assim. O infinitamente grande e o infinitamente pequeno não se traduzem em voz alta.

(17 Dezembro 2012)

2012 12 16 - Partículas no ar

. As bruxas a pentearem-se .

Sábado, meio-dia.
Na volta do pão, um aguaceiro. Não apresso o passo porque vim de chapéu na cabeça. Sabe-me bem estar na rua depois de 2 dias fechado em casa. No passeio oposto da rua estreita descem mãe e filho — ele não terá mais do que 5 anos. Ela ladra com voz crispada e amarga: “Levanta isso do chão, não estás a ver? Vá, tapa-te, ou tenho que ser eu a fazer tudo? Não prestas para nada, tu” — e o discurso amoroso continuou rua abaixo. A chuva era esparsa, um aguaceiro leve, com azul no céu e sol entre as nuvens: as bruxas a pentearem-se, como diz a tradição quando chove e faz sol ao mesmo tempo.
Olhei para trás para vê-la, incrédulo. Mais do que vê-la a ela, quis ver o miúdo, pequeno e de passo apressado, indefeso, não fosse o Kispo azul escuro com um enorme capuz com que se cobria às ordens daquela mulher. Encapuçado, ele deixava de a ver.
Quis atravessar a rua, agachar-me e dizer-lhe: “Um dia isto vai melhorar. Um dia vais levantar a voz ou antes, vais virar as costas e vens embora. Ainda tens de penar um bocado — talvez menos se ela morder a língua — mas um dia tudo vai ser melhor. Eu prometo.”
A vida melhora quando se torna tua, quando não te gritam para fechar o casaco, quando ninguém te rebaixa só porque sim, porque ouve sexo sem vontade e hálito de cerveja em noite de bola; uma gravidez em noite de vitória — ou antes de derrota?
Aleijam as pessoas amargas que calcam a autoestima de uma criança sem hesitar. Aleija não haver um lugar para onde as crianças possam fugir, uma Terra do Nunca. Protestamos contra o poder que estrangula a economia e vamos para a rua gritar, mas não dizemos nada à mulher que desce a rua no passeio oposto. Quem interdita a austeridade daquele monstro?
Eu quero acreditar no melhor. Que aquele menino de 5 anos ainda vai ser um homem feliz, se um dia conseguir olhar para a frente sem lhe pesar o que ficou para trás. É isso que eu te peço hoje, Universo. Tratas disso? Eu prometo fazer a minha parte.

(17 Novembro 2012)

2012 11 17 - As bruxas a pentearem-se

. Ipanema .

Molho o pé em Ipanema. A água está surpreendentemente boa e fico cheio de inveja dos meninos que brincam com água pelo joelho. Olho em volta e escolho um grupo de gente simpática. Peço-lhes para olharem pelas minhas coisas enquanto entro no mar – “Claro! bota aí mais junto das nossas coisas”.
Mochila, computador e outras tecnologias perdem importância quando entro no mar. Tenho o Morro Dois Irmãos à minha esquerda, o Corcovado à minha frente no enfiamento entre dois prédios e Ipanema num sábado ao fim da tarde, cheia e dengosa. Enquanto me seco o Jorge pergunta-me de onde sou e conta-me da sua avó que era portuguesa. Os miúdos trazem conchas e pedras que juntam na toalha e logo são esquecidas com o aproximar do vendedor de gelados. A avó do Jorge veio para o Brasil de barco – como o meu pai, respondi-lhe. Trocámos histórias. Vesti-me. Uma amiga do Jorge pergunta-me de onde sou e conta-me que está tentar ir a Portugal no ano que vem. Ela é contadora de histórias e quer ir a um festival em Coimbra, onde estive mesmo antes de vir para o Rio.
Sigo pelo calçadão da Vieira Souto. Skaters, bicicletas e patins. Homens musculados, raparigas gordas de skate, rapazes atrelados na bicicleta da amiga. As mães regam os pés dos filhos e a areia fica ali. Os quiosques têm as esplanadas cheias de gente a beber cerveja. Aqui comem-se as melhores pipocas do mundo e eu não me esquivo.
2 violões e uma voz cantam: “Estranho seria se eu não me apaixonasse por você…” – Parei para ouvir a sorrir, de pipocas na mão enquanto o sol se escondia atrás dos Dois Irmãos. Quis que a minha irmã Alessandra estivesse ali comigo, com o Eduardo no colo. Cantei em coro o resto da canção. Aquilo emocionou-me e sinto vontade de chorar. Uma vontade boa, feliz e triste. Porque me sinto feliz, porque a minha irmã não está ali comigo, porque ainda não tenho o teu endereço, porque há música que vive debaixo da minha pele, que emerge e me inunda e me leva e me tem.
Disse-o ao taxista e disse-o ao Jorge: as minhas raízes também estão aqui. O meu pai encontrou Lisboa a caminho do Brasil. Eu encontro aqui o prólogo da minha história e isso emociona-me. Quero continuar aquela conversa que não terminámos ontem. Ficou pra hoje.

(29 Outubro 2012)

2012 10 29 - Ipanema

. Temporal .

O Domingo pôs-se quente. Final de tarde em Santa Teresa, onde o bonde já não passa e as ruas estão iguais ao que eram antes. Sigo os carris e desço à Lapa já de noite. Do alto de Santa Teresa vêm-se relâmpagos ao longe. O ar está carregado de calor eléctrico e húmido.
Nos arcos da Lapa uma instalação do Brian Eno projecta cores que se transformam imperceptivelmente. Sento-me no chão de pedra e está quente, muito quente. Muita gente se junta ali, a ver os arcos em mudança tranquila. Vende-se cerveja, pipocas e churrasquinho. Pais e filhos tiram fotografias, aproximam-se dos arcos e fazem poses com as próprias sombras. Uma grávida de perfil com uma amiga que lhe beija a barriga, uma mãe com o filho numa cadeira de rodas, pai mãe e 2 filhos criam um Shiva colorido. O som é grave e onírico e atira-me para um estado alfa, quase a dormir. Por trás dos arcos o céu também se ilumina com os relâmpagos silenciosos. O temporal aproxima-se.
Uma rapariga sentada no chão ao meu lado diz-me olá – não a reconheço imediatamente – Ela sorri e diz: Pietro! Estás aqui? Ia pedir-te lume e reconheci-te – Era a Alface. Vem trabalhar com o Galante e a Ana Borralho e chegou uns dias mais cedo. Estava com um rapaz cujo nome nunca fixo, desculpa.
Começa a pingar. Depois a chover. Uma parte da multidão abriga-se, outra fica. A chuva engrossa e também nós nos abrigamos debaixo dos arcos. Um tipo pede-nos uma seda e eu tenho de apanhar chuva. Uns segundos bastam para me encharcar. A praça alaga, a água chega-nos aos pés um chá morno de pedra do chão. A projecção continua, a praça vazia, excepto as duas raparigas debaixo de um guarda chuva que lhes mantém as cabeças sêcas – os saltos altos cravados na água.
O nosso plano de tomar uma cerveja transforma-se em vamos-para-casa-à-chuva-porque-isto-está-para-durar. Eles seguem para outro lado e eu atravesso a rua que é já um rio. Abrigo-me debaixo de um toldo furado e vejo o nível da água subir aos tornozelos em poucos minutos. Olho à volta e começo a rir – estou num temporal tropical, sozinho no Rio de Janeiro, ensopado até às cuecas. Os arcos apagam as cores e a água toma conta de tudo. Cada vez que a chuva abranda eu avanço. Quando me abrigo torço a t-shirt. Apanho goteiras que são como baldes de água e o vento acelera. Já na Glória sigo abrigado pelas varandas largas.
E então vejo uma borboleta enorme poisar – parece uma monarca, mas tem outras cores. Parou numa coluna a 1 metro de mim. Parei. De asas fechadas tinha o tamanho da minha mão aberta. Um olho enorme a olhar para mim, como um bicho da selva. Aproximam-se 2 raparigas em sentido contrário e digo-lhes: olha lá! E a borboleta voou. A rapariga nem a viu. Já em casa no meu alpendre, deixei-me estar à chuva todo nu e comi uma manga. Bem vindo à Primavera no Rio.

(23 Outubro 2012)

2012 10 22 - Temporal

. Imagine .

Saí de manhã para comprar fruta no mercado.
Na minha rua há uma escola primária – a escola maria leopoldina. Ontem de manhã um professor tocava violão, os meninos estavam em pé em cima de um degrau com outros em baixo, como um coro. Cantavam o Imagine do John Lenon. Havia uma projecção video na parede com um retrato do John e a letra traduzida para português ia passando. Parei a ouvi-los, de peito cheio. Há professores assim, que fazem toda a diferença. E há um John Lenon assassinado, que queria um mundo melhor – a tal brotherhood of man. Os meninos cantavam atrás das grades, porque o Brasil é um país violento. Do lado de fora as mães vieram visitá-los no intervalo, trazer o lanche da manhã, uma carteira de cromos e ternura. Ao meu lado uma mãe beijava o filho, cheirava-o e beijava-o mais para não esquecer aquele cheiro.

Pode o mundo ser ganancioso, pode haver pobreza e muita desigualdade, mas também há o amor e o aguentar, há os sonhos de muita gente que canta em coro por um mundo em que o que importa são as pessoas.
41 anos depois, esta canção faz-se ouvir no pátio de uma escola pobre no Rio de Janeiro. Só por isso a canção já ganhou e o Lenon não morreu.

Continuei a descer a rua e poucos metro mais abaixo vi uma senhora do outro lado e parei. Magra e bonita. Vestido branco com florinhas vermelhas e por cima um casaco leve comprido e vermelho forte, como um manto. Os cabelos brancos presos numa trança que começava na testa do lado direito e cruzava para o lado esquerdo, seguindo para trás. Na mão segurava um raminho – creio que de arruda ou outra planta – uma Rainha.
Atravessei a rua e fui ter com ela. Disse: Bom dia! posso dizer-lhe como a senhora é bonita? Os olhos dela brilharam. Olhos claros, velados pelos 78 anos, 2 derrames e outras agruras. Ela disse que eu estava a vê-la pelos olhos de Deus. Perguntou qual era o meu nome e disse que ia rezar por mim. Depois falou sobre Deus o criador de tudo no céu e na terra, da luz e da bondade. Deus só não criou o mar, disse ela – ali ele colocou toda a sua raiva e com ela matou todo o mundo no dilúvio. Estive uns minutos a ouvir aquela senhora a falar de Deus. Não quis dizer-lhe que Deus não existe. O que eu queria era que ela soubesse que a vi linda. Ela disse-me que tinha ganho o dia. Eu respondi: eu também. Segurei a mão dela e despedimo-nos com um bom dia.

Estes dois episódios aconteceram no mesmo quarteirão, uma coisa e logo depois outra coisa.
Dia bom.

Rio de Janeiro, 18 de Outubro 2012
Rua de Santo Amaro.

2012 10 18 - Imagine

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