. Existir vírgula ponto .
by Os dias do meio
Estava a fazer café de manhã e pensei nos lugares onde já estive. Sítios que estão longe, onde a minha realidade foi diferente e eu me senti mais eu do que o costume. Alguns eram feios, outros magníficos, outros não deixaram memória. Nesses lugares eu era outro e o meu estado de graça também.
Fico siderado quando penso que todos esses lugares existem em simultâneo, que estão lá, mesmo quando eu não estou. Quanto de mim ficou para trás – as unhas que cortei, a pele morta, os subprodutos da minha digestão – e quanto de cada lugar ficou preso nos meus pulmões, nas células do meu corpo, nos recantos do meu intestino, onde um berlinde pode viver 20 anos sem que eu me dê conta?
Paro uns segundos com a colher enterrada no café moído – estou a fazer uma lista mental de sítios incríveis ou simplesmente banais. Alguns que nunca mais vou visitar, outros que não quero voltar a ver, mas por onde passei. A esquina em Bangalore onde bebi um caldo de cana num copo comunitário, as escadas do centro comercial do cacém, uma rua a caminho de casa em Alfama, o caminho de cabras de Estoi, o alpendre da palafita onde morei 1 semana na selva do Laos, a Coldharbour Lane em Londres, uma açoteia em Marrocos, o quarto do Ibis de beira-de-estrada nos subúrbios de Paris ou o Zé sapateiro do antigo prédio da minha avó.
Recordo uma tira da Mafalda em que o Felipe imaginava um mundo sem distâncias – ideia aterrorizadora que o faz desmaiar. Eu imagino os sítios sem mim e parecem-me mentira. O mundo só existe quando eu estou lá. A famosa árvore só faz barulho ao cair na floresta se eu estiver lá. A estrada que conduzo à noite só se materializa à medida que avanço e os faróis afagam o vazio. Os brinquedos só ganham vida quando eu não estou. Estas são verdades tão absolutas quanto um Amén ou Insha’Allah.
Não há provas – até hoje não há uma única prova – de que os Deuses existem. Está tudo nos olhos de quem vê, no coração de quem sente, na cabeça de quem imagina, acredita e diz. São redes de suporte que se criam para ser mais fácil existir sem um sentido predestinado. É mais fácil acreditar num Deus do que aceitar que a vida não tem mais sentido que ela própria. Existir vírgula ponto. É mais fácil acreditar num impossível escrito por homens há milhares de anos do que na realidade que se cria todos os dias. É mais fácil dizer feliz natal do que dizer eu não acredito.
Eu não tenho nada contra as fantasias, mas prefiro ser eu a inventar as minhas. Eu não acredito.
(21 Dezembro 2012)