. As bruxas a pentearem-se .
by Os dias do meio
Sábado, meio-dia.
Na volta do pão, um aguaceiro. Não apresso o passo porque vim de chapéu na cabeça. Sabe-me bem estar na rua depois de 2 dias fechado em casa. No passeio oposto da rua estreita descem mãe e filho — ele não terá mais do que 5 anos. Ela ladra com voz crispada e amarga: “Levanta isso do chão, não estás a ver? Vá, tapa-te, ou tenho que ser eu a fazer tudo? Não prestas para nada, tu” — e o discurso amoroso continuou rua abaixo. A chuva era esparsa, um aguaceiro leve, com azul no céu e sol entre as nuvens: as bruxas a pentearem-se, como diz a tradição quando chove e faz sol ao mesmo tempo.
Olhei para trás para vê-la, incrédulo. Mais do que vê-la a ela, quis ver o miúdo, pequeno e de passo apressado, indefeso, não fosse o Kispo azul escuro com um enorme capuz com que se cobria às ordens daquela mulher. Encapuçado, ele deixava de a ver.
Quis atravessar a rua, agachar-me e dizer-lhe: “Um dia isto vai melhorar. Um dia vais levantar a voz ou antes, vais virar as costas e vens embora. Ainda tens de penar um bocado — talvez menos se ela morder a língua — mas um dia tudo vai ser melhor. Eu prometo.”
A vida melhora quando se torna tua, quando não te gritam para fechar o casaco, quando ninguém te rebaixa só porque sim, porque ouve sexo sem vontade e hálito de cerveja em noite de bola; uma gravidez em noite de vitória — ou antes de derrota?
Aleijam as pessoas amargas que calcam a autoestima de uma criança sem hesitar. Aleija não haver um lugar para onde as crianças possam fugir, uma Terra do Nunca. Protestamos contra o poder que estrangula a economia e vamos para a rua gritar, mas não dizemos nada à mulher que desce a rua no passeio oposto. Quem interdita a austeridade daquele monstro?
Eu quero acreditar no melhor. Que aquele menino de 5 anos ainda vai ser um homem feliz, se um dia conseguir olhar para a frente sem lhe pesar o que ficou para trás. É isso que eu te peço hoje, Universo. Tratas disso? Eu prometo fazer a minha parte.
(17 Novembro 2012)