. Nikon F .
by Os dias do meio
Com 20 anos, fui de férias com amigos e levei a minha máquina fotográfica – uma mítica Nikon F, linda e bruta, pesadíssima. Naquelas 2 semanas acampámos perto do mar e eu levei a Nikon comigo para todo o lado. Tirei uma única fotografia, a caminho da praia, no banco de trás do carro. Ao revelar o rolo em casa, puxei a ponta do filme mais do que devia e queimei dois terços do fotograma. No canto da imagem, apenas as duas pessoas que fotografei e parte de uma garrafa de água que um deles bebia. Foi o suficiente.
Quando o meu pai morreu, tive medo de me esquecer da voz dele. Durante meses ouvi-o na minha cabeça, a dizer o meu nome ou qualquer outra coisa que me ajudasse a sentir que não o estava a perder. Lembrei-me do video caseiro de quando ele fez 50 anos – ali eu poderia voltar a ouvi-lo. Mas a câmera não era nossa e a cassete, se ainda existisse, estaria perdida numa caixa ou numa gaveta, algures em casa de alguém. Deixei estar.
Quando mais tarde comecei a dançar, parei de fotografar. Deixei de querer fixar imagens em sais de prata e aprendi a perceber o meu corpo. Aprendi que a minha memória me serve. Lembro-me.
Posso gravar uma voz, fotografar uma cara, mas nada conta melhor a minha história que o álbum que trago comigo. Cheiro o pescoço de quem gosto, aprisiono partículas de cada pessoa. Faço um álbum de família e de amores, de tudo o que me faz chegar a casa. As minhas pessoas são minhas e esse saber cabe no bolso da minha camisa. As músicas e os cheiros trazem tudo de volta. A memória está toda no corpo e basta-me. Escrever é compor cadeiras de flores.
Na primeira noite daquelas férias, largámos a correr pinhal adentro, uma ladeira íngreme que se desenhava a safanões de lanterna.
O chão e os arbustos não tinham cor. O pinhal passava por mim, destemido, ileso.
O nosso riso apontava o caminho. Atrás de nós, escuro. À nossa frente, o escuro. Entrámos vida adentro, a correr. Devia ser sempre assim – ir a correr sem ter medo de não ver.
Eu ainda estou a correr naquele pinhal, sem saber onde piso, a confiar no riso partilhado – ponto a ponto, passo a passo.
Aquela corrida é a única fotografia, é o som da minha voz, são todas as palavras.
Ainda está a acontecer.
Lindo
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